domingo, 7 de setembro de 2008

Os marmiteiros de Harvard

EXAME - Em Bombaim, a maior metrópole da Índia, um grupo de 5 000 homens com uniforme e chapéu branco executa todos os dias um serviço de entrega sem igual no mundo. No início da manhã, os dabbawalas (“carregadores de marmitas”, em hindi) retiram cerca de 200 000 refeições prontas da casa de seus clientes. O destino são milhares de escritórios localizados na área comercial, no lado oposto da cidade. Há um preciso limite de tempo para que o trabalho dos dabbawalas seja finalizado — o horário do almoço desses 200 000 trabalhadores indianos. Durante a coleta nos bairros residenciais, os dabbawalas se valem de bicicletas, carrinhos de mão ou caixas de madeira que comportam até 60 marmitas. Das casas, seguem para as estações de trem, onde outros integrantes dessa rede logística organizam sua distribuição de acordo com o destino das refeições. No desembarque, na área comercial da cidade, um novo grupo se encarrega de entregar em mãos o almoço caseiro nos escritórios. Uma hora depois começa a jornada reversa, e todas as marmitas são devolvidas a seus locais de origem. O lema dos dabbawalas é “Levar comida a alguém é o mesmo que servir a Deus”. E eles realmente encaram com seriedade a missão. Apesar da quantidade de encomendas, da precariedade dos recursos empregados e da confusão de trânsito nas ruas de Bombaim, o serviço tem índice de falhas próximo de zero. Num artigo recente, a revista inglesa The Economist estimou que ocorre um erro a cada 16 milhões de entregas dos dabbawalas. A americana Forbes classificou seu sistema logístico como um dos mais engenhosos do mundo.

Nos últimos anos, por causa dessa impressionante taxa de eficiência, o trabalho dos marmiteiros de Bombaim passou a ser estudado por grandes empresas e escolas de negócios do Ocidente. O reconhecimento da competência em logística faz hoje com que os dabbawalas dividam seu tempo entre as entregas de marmitas e as palestras. Nesses eventos, eles apresentam os fundamentos de seu sistema a platéias formadas por empresas como Coca-Cola, Siemens e Daimler-Benz e dão aulas a alunos de universidades como Harvard, Michigan e Stanford. “Por ano, realizamos uma média de dez palestras — até no exterior”, afirmou a EXAME Manish Tripathi, presidente da Fundação Dabbawala, parte da cooperativa que reúne os marmiteiros de Bombaim.

Esses trabalhadores são uma espécie de síntese do atraso do capitalismo do país. E é exatamente por isso que eles se tornaram uma referência. A primeira lição que emerge com a análise de seus incríveis índices de eficiência é que tecnologia e capital são ótimos — mas a falta deles não significa a impossibilidade do sucesso. Com suas bicicletas e o suporte do sistema de transporte público, os dabbawalas mantêm as entregas de marmitas em dia. Como se fosse o bastão de uma corrida de revezamento, as refeições trocam de mãos até quatro vezes durante o percurso (as entregas são realizadas num raio de até 70 quilômetros). O destino de cada uma das marmitas é identificado por um código composto de cores e letras, simples o suficiente para ser compreendido por uma maioria semi-analfabeta de entregadores. Cerca de 85% deles não concluíram o ensino fundamental. Em troca do serviço, os dabbawalas ganham, em média, 120 dólares por mês, rendimento considerado razoável no país para pessoas com baixa escolaridade. “Somos como um Fedex, só que entregamos comida quente”, disse o dabbawala Dhondu Kondaji Chowdhury, numa reportagem publicada recentemente pelo jornal The New York Times.

De forma intuitiva, a organização dos dabbawalas segue os mais modernos manuais de administração. Os entregadores têm autonomia para realizar seu trabalho — os problemas são resolvidos sem a consulta a chefes ou superiores — e há apenas três níveis na hierarquia da cooperativa. Há os entregadores; os coordenadores, que cuidam da distribuição das encomendas nos trens; e o pessoal do apoio administrativo, que fica no escritório. Todos recebem o mesmo salário e são bonificados quando a cooperativa conquista novos clientes. “Nunca houve uma greve sequer na história do serviço”, afirma Tripathi, da Fundação Dabbawala. Tripathi esteve recentemente em Dubai, nos Emirados Árabes, para dar lições de motivação inspiradas nos marmiteiros a uma platéia de 1 000 executivos. “Os dabbawalas têm orgulho de manter a alta taxa de eficiência do serviço e se preocupam com a qualidade do trabalho. Na prática, é como se todos fossem sócios da empresa”, diz.

Além de símbolos de eficiência logística, os dabbawalas viraram nos últimos tempos ícones de “empreendorismo social”. Num país com altas taxas de pobreza, como é a Índia, a operação consegue oferecer serviço e remuneração digna a pessoas que não teriam muitas oportunidades no mercado de trabalho devido à baixa qualificação. A cooperativa mantém uma reserva de caixa para socorrer associados em dificuldades financeiras. “Os dabbawalas são peritos na separação e na distribuição das latas, trabalhando como elos de uma corrente, passando as marmitas entre si, em diversos estágios”, escreveu Richard Donkin, articulista do jornal Financial Times, no livro Sangue, Suor & Lágrimas, que tem um capítulo dedicado à história dos marmiteiros indianos. Figuras típicas na paisagem de Bombaim, os dabbawalas viraram personagens de obras de literatura. No livro Versos Satânicos, de Salman Rushdie, por exemplo, um dos principais personagens trabalha como dabbawala antes de se tornar um astro de cinema.

Quentinhas a jato

As características que fazem do sistema de entrega de marmitas na Índia um modelo mundial de logística:

Eficiência - O sistema tem taxa média de um erro a cada 16 milhões de entregas.

Organização - Existem apenas três níveis hierárquicos entre os marmiteiros, e cada um deles tem autonomia para resolver problemas que surgem durante as entregas.

Simplicidade - O modelo mostra que nem sempre são necessários grandes investimentos e alta tecnologia para um serviço efi ciente. Os marmiteiros indianos se locomovem de bicicleta e utilizam o sistema público de transporte como apoio a seu trabalho.

A saga dos marmiteiros de Bombaim remonta ao ano de 1890, quando a Índia ainda era uma colônia inglesa. O serviço teria começado do desejo de um escriturário britânico de comer no trabalho as refeições preparadas em casa por sua mulher. Desde que o trabalho de entrega foi organizado, há mais de um século, sua estrutura e sua lógica permaneceram praticamente inalteradas. Segundo vários especialistas, as características de Bombaim ajudam no serviço. “A malha de trens cobre toda a cidade, e as casas estão concentradas em um extremo da metrópole e os escritórios em outro, o que facilita a organização das entregas”, diz André Duarte, professor e coordenador do curso de graduação de administração do Ibmec São Paulo. “Por isso, os dabbawalas dificilmente poderiam reproduzir o modelo em grandes capitais brasileiras. Mas a estrutura dos indianos serve como fonte de inspiração pela simplicidade.”

Manter a eficiência do trabalho nos dias de hoje representa um enorme desafio para os marmiteiros. Bombaim é atualmente uma das metrópoles que mais crescem no mundo. Segundo a consultoria imobiliária americana Cushman & Wakefield, a expansão esperada para 2008 em área de edifícios comerciais é de cerca de 2 milhões de metros quadrados, o equivalente a 25% da área total existente na cidade de São Paulo. Ao mesmo tempo que a expansão de Bombaim vai tornar mais complexo o serviço dos dabbawalas, também deve garantir a multiplicação de clientes dos marmiteiros. “O serviço deles permanece extremamente barato. O preço dos restaurantes e redes de fast food na zona comercial de Bombaim pode ser até 15 vezes maior que o serviço de entrega de marmitas. Dependendo da distância entre sua casa e o escritório, o cliente paga de 4 a 8 dólares por mês a um dabbawala. Por isso, a expansão da rede de alimentação da cidade nunca ameaçou os negócios dos marmiteiros”, disse a EXAME Ravi Anupindi, professor de logística da escola de negócios Stephen M. Ross, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.

A quase lendária eficiência dos marmiteiros indianos teria sofrido na história apenas alguns episódios de atrasos dignos de nota. Um deles ocorreu recentemente. No final de julho, devido a uma ameaça de bomba nas estações de trem de Bombaim, vários marmiteiros foram revistados durante o trajeto, o que gerou um atraso de 30 minutos para algumas entregas. Continuar o trabalho, a todo custo, representa uma questão de honra para os marmiteiros. Numa visita à cidade, em 2003, o príncipe Charles, herdeiro da coroa britânica, teve a oportunidade de comprovar como trabalho e senso de missão se misturam no dia-a-dia desses operários. Na programação oficial, Charles pediu que seus assessores agendassem um encontro com os famosos dabbawalas nos arredores da estação Churchgate durante uma das etapas das entregas. O príncipe tinha a seu lado o presidente da associação dos entregadores, Raghunath Medge, e ouviu admirado a descrição do funcionamento da organização. “É fascinante! Tudo é feito sem a necessidade de computadores”, disse Charles na ocasião. O príncipe conversou por apenas 10 minutos com os operários — afinal, eles tinham um horário a cumprir. Educadamente, eles explicaram ao ilustre visitante que não podiam deixar seus 200 000 clientes esperando pela comida quente — e voltaram ao trabalho.

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