quarta-feira, 2 de março de 2011

O DNA dos grandes empreendedores brasileiros

Empreender é uma decisão de vida, onde você escolhe criar seu próprio futuro em vez de deixá-lo nas mãos dos outros. Para quem segue esse caminho, a liberdade conquistada é mais importante do que toda segurança que um bom emprego pode oferecer. São pessoas que fogem dos chefes pouco inspiradores para poder sonhar sem limites, arriscando-se sem medo em águas totalmente desconhecidas pela maior parte das pessoas. Carregam como seu maior ativo a intuição, usada para guiar cada passo desse caminho.

Mas poucos empreendedores conseguem viver plenamente as possibilidades de liberdade que um negócio próprio pode proporcionar, especialmente no Brasil. Em sua maioria, acabam escravizados pelo trabalho de tal forma que vivem apenas para suas empresas. Seus empreendimentos tornam-se uma extensão de seus corpos, carregando o DNA de seus fundadores a todos os níveis da organização. Pessoas física e jurídica fundem-se, formando o elo invisível de um organismo completamente simbiótico.

Há mais de três anos pesquiso sistematicamente os empreendedores brasileiros. Alguns parecem iluminados. São pessoas com brilho e talento que fazem seus negócios se desenvolverem de forma excepcional. Empreendedores que criaram empresas que, até bem poucos anos atrás, eram pequenas como milhares de outras que nasceram na mesma época. Mas, com um toque especial, conseguiram transformá-las em grandes grupos econômicos que faturam bilhões de reais por ano. Ou então, se ainda estão longe dos faturamentos gigantescos, certamente são líderes nos setores em que atuam. Em sua maioria, mercados criados por eles mesmos a partir de sua criatividade e visão de futuro.

Visão mais ampla do mundo
Quando selecionamos os dez empreendedores que fariam parte do livro Startup Brasil, sabíamos que tínhamos montado um grupo com uma característica em comum. Se tivesse que apontá-la, diria que seria uma visão holística e altruísta do mundo. Entre os empreendedores desse livro, o que mais personifica esse perfil é o Miguel Krigsner, do Boticário. Ficará para sempre a lembrança de uma de suas colocações mais curtas e marcantes durante sua entrevista para o livro: “Pensar apenas no dinheiro é uma das maiores pobrezas que um ser pode ter”.

Afirmações como essa deixam claro que um empreendedor que só consegue olhar para seu próprio umbigo nunca será um grande empreendedor. Pode até vir a ser o dono de uma grande empresa e, quem sabe, até construir um patrimônio milionário. Mas nunca será visto como um líder genuíno, aquele que as pessoas seguem e admiram incondicionalmente.

Grandes empreendedores tem uma visão mais ampla. Sabem que medir o sucesso da empresa apenas pelos dividendos pagos aos acionistas e o retorno sobre o patrimônio líquido é, no mínimo, uma das maiores miopias do capitalismo. Vão à contramão de milhões de pessoas seguidoras de práticas de gestão que visam apenas à remuneração do capital, e assim constroem uma empresa que é muito mais do que apenas um índice de retorno sobre investimento.

Profundamente treinados para empreender
Uma das principais teses apresentadas por Malcom Gladwell em seu livro Outliers(no Brasil traduzido para “Fora de Série”) é que pessoas consideradas como fora de série fazem 10.000 horas de treinamento antes de serem consagradas como geniais. Foi assim com Bill Gates, que não virou o empresário mais rico do mundo por acaso. Antes de fundar a Microsoft com Paul Allen, em 1975, ele já tinha muito mais do que 10.000 horas de treinamento naquilo que viria a ser sua profissão, o desenvolvimento de programas para computadores.

Gates também teve a sorte de estudar na escola Lakeside, em Seattle, onde foi montado um dos primeiros clubes de informática da época. Com três mil dólares arrecadados pelo Clube das Mães, a escola ganhou um terminal de computador que mudaria a vida do garoto. Digo que ele teve sorte porque essa máquina era nada menos do que um ASR-33 Teletype, um terminal de tempo compartilhado ligado diretamente a um mainframe no centro da cidade. O equipamento era muito mais avançado do que aqueles operados por cartões perfurados que eram usados na época. Com isso, Gates começou a programar em tempo real na oitava série, em 1968, enquanto muitos estudantes universitários ainda não tinham acesso a essa tecnologia.

A bonança computacional foi passageira. Logo, acabou o dinheiro usado para pagar o aluguel das horas de mainframe. A saída encontrada por Gates e seus amigos foi gerar os recursos em troca de testes em programas da empresa C-Cubed. Mas isso também durou pouco. O negócio acabou indo à falência e lá se foi mais uma chance de mergulhar na informática. Diante dessa dificuldade, os estudantes recorreram ao centro de computação da Universidade de Washington, onde acabaram conhecendo a empresa Information Sciences Inc., que abriu suas portas aos jovens nerds em troca do desenvolvimento de um software de folha de pagamento. Em apenas sete meses de trabalho para esse projeto, Bill Gates acumulou 1.575 horas de trabalho, uma média de oito horas por dia, sete dias por semana.

Após o trabalho na ISI, Gates foi convidado por um de seus sócios a se mudar por um período de três meses para Bonneville, cidade ao sul do estado de Washington, para desenvolver os programas para a enorme usina de energia da cidade. Durante uma primavera inteira ele desenvolveu os sistemas sob a supervisão desse sócio da ISI, John Norton, uma das pessoas de que, segundo ele, mais aprendeu sobre programação. Como você pode perceber, este seria apenas o início de uma longa jornada que levaria Bill Gates a cumprir suas mais de 10 mil horas de treinamentos, antes de acumular conhecimentos para revolucionar a informática.

Também foi assim com os Beatles, um dos maiores grupos de rock de todos os tempos, que mudaram a música popular americana a partir de 1964, quando desembarcaram nos Estados Unidos pela primeira vez. O que poucas pessoas sabem é que essa invasão britânica só foi possível depois de uma incontável quantidade de horas de ensaios e shows.

Lennon e McCartney começaram a tocar juntos em 1957, mas seriam necessários mais três anos até que o quarteto (além deles havia Ringo Star e George Harrison) encontrasse seu caminho para o sucesso em um bar de Hamburgo, na Alemanha. Segundo Philip Norton, autor de Shout!, a biografia dos Beatles, o dono de uma boate de strip-tease na cidade alemã teve a ideia de levar bandas de rock para tocar em diversas casas de show de uma forma muito peculiar. As apresentações seriam ininterruptas, praticamente 24 horas por dia, para atrair quem estivesse passando na frente das boates, a qualquer hora do dia ou da noite.

Os Beatles tocaram em Hamburgo durante cinco temporadas, entre 1960 e 1962. Na primeira, eles tocaram um total de 106 vezes, sendo que cada apresentação durava no mínimo cinco horas. Quando o quarteto começou a fazer sucesso, Lennon e seus amigos acumulavam 1.200 shows, volume que muitas bandas não chegam a alcançar durante sua carreira inteira.

Se fizermos uma analogia entre os grandes empreendedores que estão no Startup Brasil e as histórias do livroOutliers, veremos que todos tiveram uma grande exposição ao mundo profissional desde muito cedo. Ou seja, antes que se dessem conta, a quilometragem de sua experiência estava rodando desde muito cedo, em alguns casos ainda na infância. Vejo esses estímulos mentais que são desenvolvidos na infância e juventude como algo que pode ser comparado ao aprendizado de um novo idioma. Da mesma forma que é muito mais fácil aprender uma nova língua nos primeiros anos de vida do que na vida adulta, o contato com os negócios ainda cedo certamente foi vital no aprendizado dos nossos personagens.

Um novo jeito de fazer negócios
Outra característica marcante desses grandes empreendedores de sucesso é a dedicação total aos seus negócios. No dia a dia das empresas, isso significa que muitas vezes eles colocam em segundo plano outros componentes importantes de suas vidas, como família, amigos, lazer e até a própria saúde. É comum isso acontecer pelo menos até que eles alcancem o topo de suas ambições, quando finalmente começam a dedicar mais tempo a si mesmos. Muitos têm dificuldade em manter uma vida equilibrada e acabam se distanciando de questões pessoais.

No entanto, vários dos empreendedores que contam suas histórias no Startup Brasil têm um perfil mais humanista, conseguindo lidar com um intenso volume de trabalho sem deixar de se dedicar também a família, lazer e saúde. Isso é mais presente em parte deles, porém todos parecem conseguir (ou ao menos buscar) certo equilíbrio em suas vidas. Talvez exatamente por esse motivo tenham conseguido levar suas empresas a um estágio tão bem sucedido.

Marcus Hadade, da Arizona, por exemplo, tem a busca por uma vida equilibrada como uma de suas prioridades. Embora trabalhe quase doze horas por dia, ao deixar o escritório ele faz questão de se entregar verdadeiramente à vida pessoal. “Se tenho meia hora com minha esposa, esqueço o telefone e o e-mail. Fico com ela de verdade. Três vezes por semana, reservo um horário para me exercitar. Nesses momentos, da mesma forma, fico absolutamente focado na minha prática. Enxergo claramente a importância de ter disciplina, dividir bem o tempo e estabelecer prioridades. E felizmente tenho conseguido praticar isso na minha vida”.

Para Vasco Carvalho Oliveira Neto, da AGV Logística, esse equilíbrio é mais desafiante. Sua jornada diária de trabalho costuma tomar quase todo seu tempo e, para compensar, ele procura preservar os finais de semana para o convívio com a família. Além disso, já faz alguns anos que não abre mão dos trinta dias de férias anuais, tempo em que fica com a família e se desliga totalmente da empresa, sem fazer contatos por telefone nem por e-mail.

O fato é que esses empreendedores já descobriram que sucesso sem equilíbrio é algo momentâneo, sem bases sólidas para se perpetuar. Se o ritmo da empresa for alucinado, com horas intermináveis de trabalho, a equipe não aguenta a pressão e vai embora. Com a troca constante de profissionais, a única cultura que se perpetua é a do estresse.

Identificamos na maioria dos presentes no Startup Brasil uma visão mais ampla das relações com familiares, amigos, clientes, fornecedores e colaboradores. São empreendedores que mantêm um canal aberto para certa sensibilidade e que buscam uma vida equilibrada com bom relacionamento com as pessoas que os cercam. São pessoas que claramente têm um sucesso pautado em bases sólidas e, portanto, “sustentável”.

Empreendedores de alma ou excelentes planejadores
Outra característica notória entre esses grandes empreendedores, com exceção de Vasco Oliveira, da AGV Logística, é a ausência de planejamento no início dos negócios. Muitos começaram sem planos de negócio detalhados, análises de mercado ou planilhas de fluxo de caixa. Foram empreendedores que começaram com a alma e a mais pura intuição, inserindo só mais tarde o planejamento em suas rotinas.

Elói D’Ávila de Oliveira, da Flytour, é um exemplo disso. No início, a experiência de vida foi seu maior ativo. Para dar o pontapé inicial, contou com seus desejos e intuições, além de uma rede razoável de contatos. Assim como em outras histórias contadas aqui, a partir de determinado estágio de amadurecimento do negócio, Elói passou a incorporar o planejamento como importante ferramenta para o crescimento de suas operações. Esta decisão surgiu depois, e não antes, que ele fizesse as bases de sua bem sucedida operadora de turismo.

Esse perfil confirma uma das bases de um recente estudo publicado por Saras D. Sarasvathy, uma proeminente pesquisadora do comportamento empreendedor e professora da Darden Graduate School of Business, da Universidade de Virginia. Seu livro “Effectuation, Elements of Entrepreneurial Expertise” apresenta uma tese controversa, segundo a qual a maioria dos empreendedores norte-americanos parte para a execução sem um planejamento prévio. Isso ocorre pelo simples fato de suas ideias embrionárias terem variáveis demais para serem pensadas dentro de um plano de negócio. Por isso, eles preferem construir seu futuro a pensar nas chances de cada uma das variáveis dar certo ou errado.

Esse grupo de empreendedores é classificado por ela com sendo do tipo “effectuation”. Seus negócios não são fruto da causa, mas sim dos efeitos de suas ações. Pessoas com esse perfil são responsáveis pela criação da maior parte dos negócios no mundo. Do outro lado, estão os empreendedores classificados como “causation”, aqueles que buscam primeiro entender a causa por trás de seus negócios por meio de planejamentos mais profundos na tentativa de controlar todas as variáveis necessárias para a empresa dar certo. Embora minoria, sua atuação pode influenciar os empreendedores tipo “effectuation” a darem o salto seguinte em seus negócios já iniciados, rumo a um bom planejamento e plano de negócios.

Diante disso, arriscamos afirmar que sair da inércia e fazer acontecer é muito mais importante no início de um negócio do que fazer business plan e pesquisas que demandam muito tempo e dinheiro. Isso não significa uma postura contrária ao planejamento, de forma nenhuma. Embora muitas empresas do Startup Brasil tenham tido grandes conquistas sem o auxílio de qualquer plano de negócios, elas passaram a adotar sofisticadas ferramentas de planejamento à medida que os negócios cresceram e se solidificaram. Depois que a empresa subiu os primeiros degraus, em todos os casos ficou clara a importância do investimento em planejamento, para conseguir um crescimento sustentável e consistente.

Pedro Mello lidera o Grupo Quack e comando o famoso Blog do Empreendedor (exame.abril.com.br/rede-de-blogs/empreendedor) e o canal Empreendedorismo do YouTube (www.youtube.com/empreendedorismo). 

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